segunda-feira, 4 de abril de 2016

pulmões foliáceos

Tenho pensado em termos de pequenos passos. Lavo a louça aqui, dou os remédios pra minha mãe ali, escrevo umas páginas de projeto, vou ao médico, escrevo outras páginas de TCC. Faço concessões, tento ajudar mais, abro mão de cada conforto. Somando tudo, não sei como escrevi essas 50 páginas. Há mais por vir, mas isso já me parece sobre-humano. De onde tirei forças? No começo do ano pintei o cabelo. Desde adolescente que não pintava o cabelo e não achava que isso voltaria a acontecer. As pessoas me perguntam quem é ele. Difícil explicar que, depois de tudo o que eu passei, a cor do meu cabelo dificilmente tem a ver com homem. Tento ser mais paciente com as pessoas, mas nem sempre é possível. Às vezes, reenceno a cena que já presenciei tantas vezes: quem entra no banheiro, vê uma das portas fechadas e percebe o silêncio, é quase capaz de enxergar as lágrimas furiosas e quentes escorrendo pelo rosto.
Tento acrescentar umas cores e me faz tão bem. Mas não é frequente: o dinheiro quase nunca dá. A companhia da minha mãe, uma feirinha de comida, uma feirinha de parafernálias, um filme no cinema, um fastfood, o maravilhamento de pegar uma linha de ônibus que eu nunca peguei e que passa por lugares bonitos da cidade, uma avenida que eu quase nunca tinha visitado, um museu, um musical, um parque, o planetário. Pode parecer banal pra alguns, mas em vista da região onde moramos, tudo parece saído de um livro de literatura fantástica. Concordamos tacitamente no conforto de ver novidade. Pessoas vivendo suas vidas. Talvez eu tenha pintado o cabelo por causa da certeza leve revelada no rosto das meninas de cabelos acobreados na linha amarela.
Às vezes: desânimo. Por que estou fazendo tudo isso? Só com os meus pequenos passos, eu não sou capaz de mudar o sistema. Mas talvez eu consiga abrir brechas nessa estrutura. E, talvez, só talvez, essas brechas permitam que a estrutura comece a respirar.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Outro dia teve consulta com seu H., acompanhado de sua mulher, dona M. Ambos me lembraram de meus parentes no interior (e tudo ficou muito claro quando eles falaram que tinham viajado pro interior pra comemorar o aniversário de 90 anos de seu H.). Dona M. só queria ser ouvida. Contava atenta os detalhes de sua rotina, o que tinha acontecido de diferente nos últimos dias. Em dado momento, falou que, exceto por aquele consultório, nunca se sentia bem tratada quando procurava um profissional da saúde. Além de ter uma sequela de uma cirurgia mal feita, Dona M. ainda teve seus sintomas negligenciados pelo médico. "Sabe o que a senhora tem?", ele lhe disse a respeito das tonturas constantes, "Idade". Dona M. se emocionou ao dizer que era ali que se sentia cuidada. Disse que tinha a A. e G. como amigas. "O médico não fala as coisas com palavras que consigo entender. Peço pra ele explicar e ele só usa um monte de termo técnico". Não entendia o procedimento que ia fazer em breve, até que A. explicasse pra ela de uma maneira mais simples. Não precisou de muito mais que isso pra que ela entendesse. Uma conversa, um olhar, alguém que ouve com empatia e que sabe traduzir conhecimento técnico em palavras simples. Contou dos netos. Ela e o marido não tinham estudado, mas todos os filhos e netos, sim. Tinham feito faculdade pública. Falou com orgulho do neto que estava fazendo geologia e da neta que ia fazer mestrado. Lacrimejei um pouquinho quando ela se emocionou, dizendo que se sentia bem cuidada naquele lugar. Fiquei pensando que queria o mesmo pra minha mãe e que até o momento só tinha dado com a cara na porta.

Dona M. é um amor de pessoa e seu marido não fica atrás. Dei-lhe um abraço na saída e desejei que ficassem bem.


Não sei, ando sendo perseguida* pelos caras que viajam e viram o Dalai Lama. Ou pelos caras que acham que, depois de viajar, vão virar o Dalai Lama. A vida poderia ter me poupado de tanta chatice nos últimos tempos. Viajar é bom? Deve ser. Tem outras coisas incríveis no mundo? Tem, sim. Por isso vou fazer uma listinha só de coisas prazerosas & libertadoras de alma (porque claro que tem das dolorosas também):

- ler uma poesia ou ouvir uma música que te faz perceber beleza em algo que você sempre conheceu
- ler uma poesia ou ouvir uma música que te faz perceber algo novo sobre o mundo
- cuidar de/ajudar alguém
- ter uma afinidade instantânea com alguém
- aprender coisas novas (por exemplo, uma língua - principalmente se for daquelas bem malucas, que todo mundo acha inútil)
- pintar ou cortar o próprio cabelo 
- mudanças/surpresas repentinas
- sentir o cheiro de uma planta que você sentia na infância
- ficar no tumblr fazendo a sua curadoria artística pessoal ou escolher roupas para usar com o mesmo tipo de sentimento
- criar alguma coisa e colocá-la no mundo
- descobrir algo novo na natureza (eu já disse que eu descobri uma vesícula produzida por uma bactéria? EU DESCOBRI)
- estudar 
- Ciências Naturais
- descobrir novas formas de arte
- conhecer lugares novos dentro da sua própria cidade
- literatura de maneira geral (inclusive a sensação nostálgica de ler uma webcomic que estranha e inesperadamente te emociona)
- quando você percebe que tem borboletas ao seu redor
- quando você escreve e coisas nas quais você nem tinha pensado começam a sair pelos seus dedos
- fazer carinho em gatos/perceber que seus gatos te amam
- a dor muscular no dia seguinte a uma atividade física intensa
- yoga, sim (e qualquer coisa que desperte a sua consciência corporal de alguma forma)
- o frescor da chuva depois de um dia muito quente
- ter idéias (principalmente se elas forem descabidas e censuráveis)
- banho quente (dependendo do clima, obviamente)
- conhecer aleatoriamente pedaços das histórias e das particularidades de um estranho
- como tá nesse post aqui, não ser o que as pessoas esperam que você seja
- conseguir fazer algo que parecia impossível
- não conseguir fazer algo e, depois da frustração, perceber que tudo bem, tem outras coisas para serem feitas no mundo

(lista sempre em andamento porque eu esqueço várias coisas)

*a mania de perseguição claramente é de família

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

um dia por vez

1. Hoje teve consulta com um senhor de 91 anos. Ele teve que responder a um questionário longo e complexo sobre a percepção que tem da própria qualidade de vida. Algumas perguntas avaliam se a pessoa se sente deprimida. "Você se sente desanimado a ponto de isso interferir nas suas tarefas diárias? Se sente triste? Se sente exausto?" O velhinho respondeu que não pra tudo. Sente-se disposto, cumpre com sua rotina diária, tem energia, varre a frente da casa todo dia, carrega as compras se os filhos deixarem, sobe escada, anda. Só tem um pouco de dor nas costas. "O senhor sente vontade de se isolar?" Não, convive bem com a família, brinca com os netos. Confesso que, apesar da consciência de que as pessoas são diferentes, o choque veio com a próxima pergunta. "O senhor em algum momento tem a sensação de que nada na sua vida vai dar certo?", "Não, nunca senti isso". É como ficar mais consciente do fato de ter sido sempre, a vida toda, muito doente ao encontrar alguém ridiculamente saudável.

2. Acho que meu favorito é "But the film is a saddening bore/For she's lived it ten times or more"

sábado, 2 de janeiro de 2016

cíclico

Andei pensando em deletar esse blog. Eu demoro TANTO pra postar qualquer coisa. Às vezes fico matutando algo, mas acabo não achando importante o suficiente para escrever. Dificilmente tem gente lendo, porque eu meio que não passo o link pra ninguém (se você está, obrigada).

Mas eu meio que gosto daqui e me sinto confortável. Nesse ano eu ouvi de pelo menos uns 200 parentes que eu preciso procurar psicológico (um indicador de que andei soltando os cachorros em cima de quem merecia mais vezes do que o normal), e talvez eu até precise mesmo, mas eu tenho os meus meios de me consertar, remendar, repensar. Escrever aqui é um deles. Absorver narrativas e construir novas maneiras de me relacionar com o mundo é outro. Ficar sozinha e ouvir música são outros. Uma grande parte das pessoas com quem eu convivo provavelmente acredita que tudo isso é muito passivo e não muda nada pra ninguém, mas todos esses fios interconectados são o que me fazem ver o mundo de outras maneiras e arranjar forças pra sobreviver melhor.

Antes que você pergunte, então: o meu ano foi um empilhamento de bostas. Mal tive tempo de respirar entre uma desgraça e outra.

Hoje de manhã vi um babaca reclamando de como 2015 tinha sido horrível por culpa de política (quando, na real, a culpa era dele mesmo). Eu gostaria de poder culpar as matemáticas abstratas que governam o preço do pão, mas infelizmente, quando saúde mental está envolvida, as coisas se tornam um pouco mais complicadas e insuportáveis.

Não dá pra ser feliz em um ano em que uma das pessoas que você mais ama & respeita fica extremamente doente e precisa de um cuidado que o teu sistema de saúde não está pronto para oferecer. A concomitante falta de dinheiro pra pagar conta de água e luz dói, mas parece pequena em comparação.

Eu ando meio sem paciência. Eu meio que não quero sair de casa e ouvir as pessoas reclamando de uma reprovação na faculdade, de um término de namoro. Eu meio que quero socar o familiar que vem reclamar que não vai poder comprar o celular do ano porque os impostos em cima dele aumentaram. Por outro lado, tudo isso não tem me feito ficar incomodada com a felicidade alheia. Que bom que você conseguiu um emprego novo e tá gostando. Que bom que você tá feliz por ter começado a namorar. Que bom que você viajou o mundo. Só não venha com esse papo de que a tua viagem fez você amadurecer muito, que morar sozinho e lavar suas próprias cuecas te tornaram praticamente um ser humano de outra galáxia. Vem aqui pro meu lugar procurar médico decente no SUS, vem aqui administrar medicamento pra quem precisa desesperadamente e não toma direito e depois a gente conversa sobre amadurecer 10 anos em 1.

Às vezes, a sensação de envelhecer é como a de ser possuída por uma entidade cósmica com uma paciência de uma ordem de grandeza infinitamente maior que a minha. Às vezes a gente só surta muito mesmo e tudo bem.

Bora acreditar que 2016 vai ser melhor, né. Num ano em que eu aprendi a pedir ajuda da parentaiada tudo (depois de ouvir de todos os profissionais qualificados que eu preciso de ajuda para lidar com um problema tão grande), bora manter meu amor saudável, indo regularmente ao médico, morando em um lugar seguro, estudando e cercada pela família (mesmo que muitos membros sejam uma bosta e que a união aconteça na base da porrada). Bora aceitar que às vezes vai ter surto, sim, e eu não vou poder fazer nada que não seja dar amor, levar ao médico e me certificar de que a os medicamentos estão sendo tomados corretamente. Bora começar a primeira segunda-feira do ano fazendo atenção farmacêutica. Bora terminar essa faculdade e entrar no doutorado no meio do ano, porque nenhuma dessas duas coisas vão se fazer sozinhas.

E se nos quebrarem todinhas, a gente cola tudo de novo. Tamo aí é pra isso mesmo, 2016.

domingo, 19 de julho de 2015

assombrações

Na primeira vez em que te vi, você estava erguendo o braço para pegar um livro. A manga da sua camiseta desceu, e, por baixo dela, pude ver a tatuagem. Não consegui ler (por miopia), mas percebi que eram palavras.

Em uma parte de Hannibal, um agente do FBI morre. Ele era um personagem de fundo, pro qual ninguém teria dado muita atenção, mas o Thomas Harris descreve que tanto a Clarice quanto uma amiga dela tinham uma queda por ele. Ambas tinham tido aulas de tiro com esse cara e elas tentavam ler a tatuagem dele através de sua camiseta.

*

Percebi o seu olhar e me lembro de você arranjar uma desculpa pra me fazer uma pergunta banal. Não te culpo: eu provavelmente parecia fofa no primeiro dia. Não sou uma mulher bonita, não de acordo com padrões de beleza. Entretanto, gosto de pensar que, se eu tenho algum tipo de beleza, ele é daquele tipo que você só pode encontrar na natureza: bruta e selvagem. Em geral, eu tendo a perceber quando alguém percebe esse aspecto de mim.

Mas, na próxima vez, quando nos vimos de novo e você sabia o meu nome (mesmo fingindo não ter certeza), eu tive certeza.

*

Quando eu te vi pela primeira vez, eu não imaginei, mas poderia ter imaginado, como seriam todos os pequenos desaforos seguintes, todas as pequenas faíscas.

Um dia, quando era criança, estava no quintal com um vizinho e um inseto subiu nele. Eu tenho fobia de alguns tipos de insetos. Eu entro em pânico, é vergonhoso. Ele se debatia, horrorizado, e eu passei todos os próximos anos da minha vida acreditando, sempre que via aquele tipo de inseto, que algum dia o mesmo aconteceria comigo. E aconteceu. Quando te vi pela primeira vez, senti esse mesmo tipo de horror.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

dear dear diary

Esse semestre não foi bom, eu acho. Eu vinha me sentindo bem e, de repente, no meio do ano passado a coisa começou a desandar. Comecei a me sentir deprimida como me sentia no fim da escola. Bom, a faculdade está acabando. Ou não. Não sei, as linhas não são tão claras.
Pondo tudo em perspectiva, no último semestre do ano passado eu ainda dava conta das matérias. Nesse semestre, eu estava/estou exausta. Eu não tinha vontade de acordar. Eu chegava atrasada todos os dias na aula. Não tinha vontade de estudar. Não queria fazer nada além de surtar. Alguém mais calmo pode subestimar o tempo que se pode gastar surtando. Mas a verdade é que, no fim, tudo deu certo. Quer dizer, algumas notas ainda não saíram, mas as do bloco de matérias mais importante da minha graduação saíram e fui bem, apesar de todos os problemas. As férias começaram, viajarei por cinco dias (torcendo para não ser uma merda), trabalharei todos os outros, tenho relatório e pôster pra fazer, tenho projeto de TCC para executar, mas estou - sim, com alguma calma - recuperando gradualmente as forças, como um monstro ferido que se prepara para atacar. Escolho as matérias do semestre que vem, flerto um pouquinho com a vontade de estudar, passo algum tempo em tumblrs sobre estudo e organização. Nanotecnologia, planejamento avançado de fármacos (apesar dos conselhos sábios de um amigo sobre nunca fazer nada com avançado no nome). Algo ligado a bioinformática? Não sei, mas considero a possibilidade. Acho bonita a parte de farmácia clínica, gosto da idéia de entender de uma maneira mais concreta a relação que as pessoas tem com medicamentos, sabe. Tenho feito planos para o futuro e as coisas já não parecem tão incertas. Também não parecem certas, mas pelo menos tomei algumas decisões, diminuí o espectro infinito e consequentemente aterrorizante de possibilidades. Costumava achar que uma pausa não valia de nada, que só fazer efetivamente as coisas valia a pena, mas em algum momento percebi que os momentos de planejamento antes do recomeço são não só importantes, mas essenciais.

To the moon e avante, afinal, né.